"Talvez o longboard seja a
modalidade mais complexa do surf, tecnicamente falando. Emendar o surf
tradicional com o moderno pode não parecer tão difícil lendo um livro de
regras, mas na hora de colocar em prática pode ser bastante complicado.
E pra quem não é do ramo, fica mais difícil entender o grau de
dificuldade de alguns detalhes.
Nos últimos anos a ASP tem feito
alterações nos critérios de avaliação. Os competidores sentiram falta de
um especialista no assunto, para ajudar na elaboração dos critérios
técnicos e no entendimento desses detalhes básicos. Todos sabem da
importância de um estilo funcional no surf de longboard, mas sem
intimidade com um pranchão fica difícil entender os fundamentos que o
compõem.
Independente da abordagem (clássica ou moderna), não dá pra
brigar com uma prancha que mede nove pés. A força só funciona para
determinados momentos. Uma postura mais tranqüila em cima da prancha,
com harmonia de movimentos, base mais fechada e livre para o jogo de
pernas, a fluidez ao linkar a linha clássica com a moderna facilitam na
hora de surfar com uma nove pés. São fundamentos básicos que deveriam
ser observados com mais cuidado numa competição, mas acabaram
corrompidos com o tempo e hoje acabam passando despercebidos por quem
elabora as regras.
Desde que os surfistas progressivos começaram a
invadir os principais campeonatos de longboard do mundo, as polêmicas
vem aumentando a cada ano. O surf tradicional imperou por muito tempo
nos critérios de julgamento. Surfistas como Joel Tudor e Kevin Connelly
eram referências em qualquer campeonato, mas seguindo a tendência
radical do esporte, os limites foram sendo ultrapassados também com os
pranchões, e eles passaram a ter resistência de caras como Bonga
Pekings, Picuruta, Jeff Kramer, Jason Ribbink, Amaro Matos e Collin
McPhillipps. Surfistas que conhecem muito bem a tradição, mas que tem
uma linha mais vertical. Mesmo a coisa ainda não estando tão escancarada
pro lado progressivo, foi o suficiente para perceberem que a maioria já
surfava fora da linha conservadora que dominavam e decidiram sair do
tour. O Joel ainda tentou reverter o conceito da ASP, mas foi em vão. O
surf de rabeta estava cada vez mais conceituado.
Até 2004, ano do
último título dele, os elementos tradicionais ainda prevaleciam. 2005
nem tivemos campeão, talvez tenha sido o momento mais crítico da
modalidade. No ano seguinte, durante o mundial Rabbit Kekai, na Costa
Rica, esses elementos começaram a perder força. O negócio era tirar a
prancha ao máximo, mesmo que o cara viesse agachado ou espalhafatoso,
sem fluidez e harmonia. Isso foi demais pra um surfista tão tradicional
como o Joel. Foi o último WLT que ele participou.
O campeonato que
deu o titulo mundial ao Phil Rajzman, na França em 2007, foi a
consolidação do que vimos no ano anterior. Claro que não por causa do
Phil, que foi impecável em todas as baterias. Mas o evento marcou não
somente pela valorização do surf progressivo, pois isso já vinha
acontecendo há bastante tempo, mas sim pela super desvalorização dos
elementos tradicionais, fazendo com que o mito Nat Young tomasse a
iniciativa de expressar via email a todos os competidores e à própria
ASP, a sua preocupação com os rumos que a modalidade estava seguindo.
Disse que aprovava a combinação das manobras modernas e tradicionais,
mas alertava sobre a importância em preservar os fundamentos básicos,
pois sem eles, temia que os eventos de longboard se transformassem numa
espécie de categoria B do surf de pranchinha. Pro Nat Young, que ganhou
apelido de animal pela forma agressiva que surfava já nos anos 60, ter
ficado preocupado é porque o caso era sério mesmo.
A ASP respondeu
através do Tim Marshall, dizendo que também não pretendia que o
longboard se transformasse numa categoria B de pranchinha, mas que
também não queria que os eventos fossem um grande torneio de noseriding.
Dizia que isso seria um passo para trás, mas ele parece não ter
entendido a essência do que o Nat disse sobre preservar fundamentos do
surf tradicional, pois não se trata apenas de noseriding. Seria
interessante que longboarders renomados, formadores de opinião, fossem
consultados para facilitar esse trabalho. Além do Nat Young, o Wingnut
acompanhou algumas etapas do WLT, mais como garoto propaganda da Oxbow,
mas a presença deles acrescenta sempre informações preciosas para
comissão técnica. Aqui no Brasil, caras atuantes como o Alex Leco, além
de ter visto de dentro d’água toda essa transformação, tem conhecimento
prático de julgamento. Poderia ser muito útil para orientar o staff e
fazer a galera entender os critérios no circuito brasileiro.
Os
emails do Nat parecem não ter adiantado nada e o julgamento estava cada
vez mais comprometido com o surf de rabeta. A ASP estava encantada com a
linha progressiva de caras como Harley Ingleby e Ned Snow. Em 2009, o
Harley sagrou-se campeão mundial no Oxbow das Maldivas. Quando vi a
prancha que ele estava usando entendi perfeitamente a preocupação do Nat
de que o surf não virasse uma categoria sub da pranchinha. Ela era
ridiculamente estreita e fina, com muito rocker na rabeta e triquilha.
Logo me veio na cabeça que dificilmente eu o via fazendo uma linha mais
clássica, mandando longos noseridings ou nem mesmo curto hang ten nas
baterias. Mas não dá pra negar que ele tem uma linha polida, embora seja
100% progressiva.
Como a coisa ficou muito voltada pro surf de
rabeta, na temporada de 2010, a ASP criou uma fórmula com intenção de
valorizar também as manobras tradicionais. Inventaram um sistema onde o
surfista não passaria de 75% dos pontos se não combinasse manobras
tradicionais e modernas. Foi um fracasso total, pois surf clássico não
se limita apenas às manobras, é preciso analisar o conjunto da obra. Por
isso as manobras clássicas viraram apenas um complemento e muitas vezes
saíram notas na casa dos nove pontos com ondas surfadas apenas
progressivamente. Uma boa amostra que a linha agressiva veio pra ficar, o
que para muitos é a lógica num esporte radical por natureza como o
surf. Já para outros é a morte da pureza...
Mas é vida que segue, e
no mês passado a ASP publicou no seu livro de regras a importância de
analisar também o foot work, além do estilo e fluidez na combinação das
principais manobras, mas o que vai mandar são as condições do mar
durante a competição. Se estiverem limpas, o old style acrescentará
bastante. Já nas ondas curtas e picadas a tendência é radicalizar
bastante, mas para o bem do longboard, que seja sempre com uma postura
adequada, sem aquela base arreganhada com chacinas de baratas. Se
acontecer desse jeito será bom, pois o surf de longboard deve ter essa
submissão do surfista em relação à onda, funciona melhor se ela der as
cartas.
O sistema 75-25% do ano passado não existe mais.
Provavelmente veremos a valorização de detalhes que caracterizam uma
abordagem funcional para surfar de longboard, seja tradicionalmente ou
de forma progressiva. Assim respeitamos a natureza radical do surf e a
tradição clássica da modalidade. "
TRADICIONAL OU PROGRESSIVO - Revista Fluir - julho 2011, ano 28 (numero 07), ediçao 309 - coluna LONGBOARDER, por Jaime Viúdes.
Foto: Cássio Carvalho / Surfer: Jaime Viudes