Sebastião é um adolescente de 13 anos com quem converso com freqüência. Gosto dele, e ele tenta gostar de mim, embora, às vezes, eu seja chato.
Por exemplo, recentemente, Sebastião me confessou que tinha o sonho de sacudir e explodir um
magnum de champanhe. Isso quando ele ganhar um Grand Prix de Fórmula 1 ou algo equivalente.
Eu comentei que, nessa ocasião, ele deveria escolher um espumante de terceira. Não pelo custo, mas "por respeito".
"Respeito pelo quê?", ele perguntou.
Improvisei uma dissertação sobre a
méthode champenoise. Expliquei como, numa região específica da França, as uvas
chardonnay e
pinot são colhidas, seu mosto é fermentado em tanques e, logo, durante seis anos ou mais, transvasado repetidamente em garrafas, retirando do gargalo, a cada vez, o sedimento e as levuras. Evoquei a vida do viticultor, entre a espera e o cuidado da vinha. Falei da invenção do champanhe, no século 17, por um monge que se chamava Dom Pérignon, e das novidades introduzidas pela senhora Clicquot, no século 19.
Em suma, estraguei a festa imaginária de Sebastião só para lhe lembrar que o líquido que ele se propunha despejar, era o resultado do trabalho paciente de artesãos
obstinados e orgulhosos de sua arte.Chatice, não é? Mas tenho uma desculpa. A conversa com Sebastião acontecia em Milão. O centro da cidade, onde a gente estava, era tomado por hordas de compradores de moda e design, entre os quais a maioria absoluta era de
"emergentes" de sociedades que, hoje, vivem uma rapidíssima mobilidade social (Rússia e China).
Ou seja, eu era circundado por consumidores pouco interessados na qualidade do trabalho embutido nos objetos que eles adquiriam e
muito interessados no status que esses objetos e suas marcas podem conferir aos usuários.
Diferente destes, o comprador do produto artesanal reconhece e admira, no objeto manufaturado,
a arte de quem o fabricou.
Mas nem sempre é assim. Na extrema insegurança produzida pela rápida mobilidade social ("Será que os outros sabem que eu me enriqueci?"), o novíssimo-rico acumula produtos de luxo, sem ter tempo de acumular a cultura mínima para apreciá-los. Como assim?
que cultura?Quando eu era criança, o senhor Columbaro era o humilde alfaiate da família: ele sabia recortar os ternos velhos do meu pai para confeccionar calças e casacos para nós e, também, ele conseguia dar uma segunda vida a ternos puídos, reconstituindo-os depois de ter virado o tecido pelo avesso. Pois bem, uma vez, o senhor Columbaro me explicou longamente por que um terno de Seville Road cai solto ao redor do corpo (só para começar: a tela interna não é colada, mas costurada com centenas de pontos).
Comecei assim a enxergar, nos produtos manufaturados, o esforço e a habilidade de quem os fabrica. A cultura embutida neste trabalho, muitas vezes passada de geração à geração.
Os leitores de "Gomorra", de Roberto Saviano (ed. Bertrand Brasil), assim como os espectadores do filme homônimo, sabem que já há porões em que se fabricam, ao
mesmo tempo, do mesmo jeito e no mesmo molde, a suposta alta-costura e suas "cópias" destinadas a quem só quer passear com uma marca famosa gravada no peito.
Qual a relevância disso tudo?
Tornamos-nos incapazes de reconhecer, respeitar e enxergar o trabalho humano nos objetos que usamos.
Era isso que eu tentava dizer a Sebastião.
Adaptação do texto “O luxo e o trabalho do artesão” de CONTARDO CALLIGARIS, Publicado na Folha de São Paulo em 29/01/2009.Este texto lembra, em alguns aspectos, a definição do grupo de artistas ligados ao surf,
Grass is Greener:
"Grass is Greener was birthed with only one goal in mind -
gettin' back to basics. through time, & the influence of
modern technology, we've lost so many tools & techniques that have helped craft what so many of us as surfers, artists, & musicians, love & thrive off of to this day; blurry washed-out photographs, non-saturated & faded art, less friendly wave-riding equipment & raw music recordings from our recent golden eras; it
all leads us back to the past.
."